Descobri a pessoa cedo. Desde então vivemos uma longa e duradoura relação de amor. Hoje, dia da poesia, lembrei-me desta crônica do Pedro Bial antes da geração Big Brother. É uma de muitas do livro Crônicas de Repórter. Gosto muito da escrita do Bial. De sua narrativa simples e com forte influência da poesia. Compartilho com os amigos. Espero que gostem.
Ao encalço da poesia
De vez em quando, me punha a seguir aquele homem que andava como se desejasse ser invisível, como quem quisesse se esconder do mundo.
Ele não me conhecia, mas eu o amava intensamente.
Guardava vinte metros de distância e obstinadamente o acompanhava até sua casa. No caminho, ele costumava parar numa livraria, espiava, entrava em outras lojas, carregava quase sempre um embrulho.
Alguns passantes o reconheciam, mas ninguém o abordava. Eu passava um bom tempo construindo mentalmente uma frase, imaginando a coragem de falar com ele. Nunca falei.
Mesmo assim, me imaginava espectador da concepção de um novo poema, de uma crônica, que nascesse daquele passeio pelas ruas de Ipanema.
Procurava nos jornais dos dias seguintes alguma referência a imagem ou evento que tivéssemos ambos presenciado. Ele como poeta, eu como perseguidor da poesia.
Eu queria entender como.
Muitos anos mais tarde, ele já morto, um livro me ensinou a origem e o destino de muitas dessas caminhadas. Ele voltava da casa de uma amiga, íntima, que compartilhou de muitas tardes de sua vida. Retornava do amor amante para casa.
Mas eu não sabia. Aliás, ninguém sabia e quem desconfiava não ousaria abrir a boca para falar da intimidade do poeta.
Não era apenas pela mensagem inequívoca que seu corpo curvado e o andar de funcionário público emanavam. As pessoas não se aproximavam dele, por reverência e temor. Timidez dele, talvez...
E como era muito sábio, e como sabia de coisas que não se aprende nos livros, ninguém hesitaria em condená-lo à imensa solidão dos gênios.
Só que, na intimidade, o poeta falava mais do que a boca. Quem compartilhou de sua conversa em ocasiões sociais, lembra de sua tagarelice.
Caetano Veloso contou uma história adorável. Diz que uma vez, Caetano narrou ao poeta uma conversa que teve com Caymmi. O doce Dorival teria dito que conseguia se abstrair das coisas ruins do mundo. “Só penso em coisa boa!”, afirmou Caymmi.
Ao ouvir a frase, o poeta replicou: “E nós, hem, Caetano? Que só pensamos em coisa ruim?”.
Agora lançaram poemas inéditos daquele homem que eu costumava seguir pelas calçadas de Ipanema. Um livro de adeus à vida, belo e melancólico, poesia de primeira.
Já disse, andava atrás dele buscando explicação: O que faz dele um poeta? O que ele está vendo agora? Como? Em que está pensando? Onde nasce a poesia?
Difíceis respostas...
De qualquer jeito, o hábito de perambular pela cidade eu conservei e posso dizer que é algo inspirador. As pernas batem e a cabeça se perde dos pensamentos. Deixar esvaziar. Mais ou menos, o mesmo processo que acontece ao brincarmos com joguinhos de computador. Ocupados com a tarefa mecânica de vencer a máquina, liberamos o inconsciente e vamos criando um nada mental, um terreno fértil para a criação. Mas a rua ainda é melhor do que a realidade virtual, talvez até mesmo mais real...
O homem que eu perseguia pelas ruas, vocês já devem ter adivinhado, era o poeta Carlos Drummond de Andrade.
Aliás, acabei me estendendo demais sobre o assunto e nem comecei a falar do que tencionava dizer.
Pretendia discorrer sobre as diferenças entre o texto de telejornalismo e o texto poético. Ia falar sobre as duas funções da linguagem, descritas por Walter Benjamin, a função de comunicação e a de expressão; dizer que em jornalismo ninguém se expressa e que não é elogio chamar repórter de poeta. Iria lembrar que, às vezes, a forma sintética de dizer as coisas em televisão cria construções quase-poéticas, mas que poesia mesmo quem faz é a câmera...
Ia também falar do tesouro que a escritora Eloí Calage guarda em Goiânia. Da correspondência que ela manteve por 30 anos com Mário Quintana e da biografia imaginária que ele a encarregou de organizar. Pensava em reproduzir uns trechinhos das cartas de Quintana para Eloí, uma de suas mais queridas musas. Como este: “...esperei teus anunciados telefonemas, cheio de desespero e fome...”; ou este, sobre as críticas ao infantil Pé de Pilão pelo emprego de palavras como “relambório” ou “sacripanta”: “... Respondi-lhe em carta que eu não as tinha empregado por serem difíceis e sim por serem engraçadas e que as crianças adoram as palavras escalafobéticas...”.
Mas não falei de Quintana e sim de Drummond, ta bom?
(Pedro Bial – Crônicas de Repórter/Julho de 1996)